Sete Livros
Sexta–feira

“Sexta-Feira: o fim do mundo… ou então não fecha a componente de espetáculos do ciclo “Sete Anos Sete Peças”. Cabe assim lembrar os “dias” (anos) anteriores que se têm sucedido desde 2015. Destaco, em particular, dois aspetos comuns a todas as peças deste ciclo: história e paisagem.

Recordemos que toda a génese do ciclo está numa reação às violentas e radicais medidas de austeridade desenhadas em 2010 em grande parte das economias ocidentais, e do seu impacto em Portugal, particularmente. Para contrariar a estratégia do “shock and awe” tornava-se necessário, justamente, parar e visualizar criticamente os eventos que tinham conduzido ao estouro da manada ultraliberal. Assim, desde “Segunda-Feira”, Cláudia Dias tem convidado a nossa atenção para a história da desunião europeia, para a história do extermínio do povo palestiniano, para a história do petrodólar, e não esquecendo a história das próprias contadoras de histórias. Seguir estas linhas temporais já nos levou a levar murros e pontapés, a incendiar mapa-múndi, a esgravatar crateras de mísseis, a ler em livros gigantes; e agora, chegada “Sexta-Feira…” escutaremos a história de vários futuros possíveis.

Este itinerário pelas histórias da história possui, felizmente, uma componente acidental, fruto das partilhas e conflitos de Cláudia Dias com os seus cocriadores convidados; é uma viagem que se inscreveu, indelével, nas vidas de quem nela partiu. Não é turismo predeterminado. Perspetivar assim a história requer uma certa distância, que as peças deste ciclo traduziram em espaços onde diversas linguagens se entrecruzaram, desenhando paisagens individuais.

Remate certeiro da globalização, a pandemia de Covid-19 a todos ditou isolamento, que se diz higiénico. Afastemo-nos de todos os materiais perigosos, como são os rostos, os toques, as ruas e as escolas. Barricados nas nossas próprias divisões, restam-nos os mundos virtuais como única possibilidade limpa de continuar as nossas vidas. Felizmente, empresas de telecomunicações e curadores de conteúdos estavam já bem preparados para nos socorrer neste momento difícil. Em tempo de pandemia, tempo em que deixámos o terror sentar-se confortavelmente nas casas e nos espíritos, convocar cidadãos ao teatro tem um bizarro e fascinante sabor a roleta-russa. O lugar que os atenienses “inventaram” para partilharem os episódios fundadores da sua sociedade, para testemunharem o que era a sua própria sociedade, sendo muito seleto, era, pelo menos, ao ar livre. Hoje, partilhar presenças e ideias comporta um risco considerável.

Nas anteriores peças do ciclo, habituámo-nos a ver Cláudia acompanhada de um outro artista, sobre o palco. Em 2020, isolada também se apresenta Cláudia Dias em “Sexta-Feira…”, higienicamente separada dos públicos por uma tela translúcida, através da qual a apercebemos graças ao desenho de luz de Nuno Borda d’Água. Não se trata, contudo, de uma estrita observação da etiqueta pandémica; a solidão é uma condição necessária ao trabalho da pitonisa, figura sacerdotal da Grécia Antiga, que Cláudia escolheu emular – não sem uma pitada da subtil ironia que alguns lhe reconhecerão. A esta figura, remanescente de um culto matriarcal anterior ao panteão de Zeus, cabia a tarefa de interpretar sinais e augúrios, dando respostas – ainda que obscuras – sobre o futuro dos que a consultavam. Pontes entre humanos e deuses, entre presente e futuro, as pitonisas eram eleitas, numa sociedade extremamente cruel e desigual, para desempenhar um trabalho excecional: ver e anunciar o que aí vem. Isto, claro, com o auxílio de vapores de etileno, indutores de um transe místico, que brotavam do solo vulcânico. Os mesmos que muitos de nós inalam num quotidiano de poluição, curto de futuro para o comum cidadão, mas onde se giza, a passadas largas, um futuro muito pouco respirável.

Assim, na sua solidão de pitonisa, Cláudia Dias elencou cinco visões de um futuro plausível mas não pacífico, a saber: 1) a ameaça nuclear; 2) o colapso da biosfera; 3) o renascimento do fascismo; 4) a digitalização da mão-de-obra; 5) a mercantilização da cultura; cinco visões que se tornaram especialmente próximas nos últimos cinco anos. Delimitam-nas ainda duas visões mais pessoais, uma sobre a sua condição presente, e outra sobre o seu próprio futuro. Visões coligidas com o contributo de Jorge Louraço Figueira, com base numa miríade de citações que vão de Shakespeare a Donald Trump, passando por Angela Davis e Jerónimo de Sousa. A apropriação de material externo foi também uma constante nas obras de Cláudia Dias, que, ao convocar as vozes de outros, tenta inscrever o pensamento de muitos. Não está assim tão só, portanto.

Além dos materiais literários, “Sexta-Feira” convoca mais outras duas linguagens: a animação de António Jorge Gonçalves e a música de Vasco Vaz / Miguel Pedro. Este duplo diálogo, lançou, uma vez mais no contexto “Sete Anos Sete Peças”, o desafio de estabelecer uma paisagem específica, onde todos os discursos pudessem coexistir com a sua autonomia e natureza próprias, e ainda assim, criar um nexo comum. Nos laboratórios de “Sete Anos Sete Peças”, muita da investigação foi dedicada a cirúrgica alternância de linguagens diferentes. Desta feita, António Jorge Gonçalves, que tem acompanhado todas as peças do ciclo, ilustrando as respetivas edições em livro, traz agora o seu traço, sob a forma de luz branca animada, para inscrever na tela formas com que Cláudia Dias interage (dança?!). E Vasco Vaz e Miguel Pedro tomam para si a maior parte do espaço, preenchendo-o com canções, a seu tempo ásperas, grandiosas, divertidas ou soturnas que Cláudia tem de… cantar. Este desafio suplementar casa também com a estrutura que “Sexta-Feira…” importou da tragédia grega, onde os episódios narrativos eram intervalados por comentários cantados pelo coro (estásimos). Neste último espetáculo do ciclo, Cláudia Dias propôs-se fazer algo que nunca tinha feito: transportar as suas palavras pelo canto – o canto não de quem seduz e rebrilha, mas o canto do artesão no seu labor.”

Karas

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Quinta-feira

Sexta-Feira: o fim do mundo… ou então não fecha a componente de espetáculos do ciclo “Sete Anos Sete Peças”. Cabe assim lembrar os “dias” (anos) anteriores que se têm sucedido desde 2015. Destaco, em particular, dois aspetos comuns a todas as peças deste ciclo: história e paisagem.

Recordemos que toda a génese do ciclo está numa reação às violentas e radicais medidas de austeridade desenhadas em 2010 em grande parte das economias ocidentais, e do seu impacto em Portugal, particularmente. Para contrariar a estratégia do “shock and awe” tornava-se necessário, justamente, parar e visualizar criticamente os eventos que tinham conduzido ao estouro da manada ultraliberal. Assim, desde “Segunda-Feira”, Cláudia Dias tem convidado a nossa atenção para a história da desunião europeia, para a história do extermínio do povo palestiniano, para a história do petrodólar, e não esquecendo a história das próprias contadoras de histórias. Seguir estas linhas temporais já nos levou a levar murros e pontapés, a incendiar mapa-múndi, a esgravatar crateras de mísseis, a ler em livros gigantes; e agora, chegada “Sexta-Feira…” escutaremos a história de vários futuros possíveis.

Este itinerário pelas histórias da história possui, felizmente, uma componente acidental, fruto das partilhas e conflitos de Cláudia Dias com os seus cocriadores convidados; é uma viagem que se inscreveu, indelével, nas vidas de quem nela partiu. Não é turismo predeterminado. Perspetivar assim a história requer uma certa distância, que as peças deste ciclo traduziram em espaços onde diversas linguagens se entrecruzaram, desenhando paisagens individuais.

Remate certeiro da globalização, a pandemia de Covid-19 a todos ditou isolamento, que se diz higiénico. Afastemo-nos de todos os materiais perigosos, como são os rostos, os toques, as ruas e as escolas. Barricados nas nossas próprias divisões, restam-nos os mundos virtuais como única possibilidade limpa de continuar as nossas vidas. Felizmente, empresas de telecomunicações e curadores de conteúdos estavam já bem preparados para nos socorrer neste momento difícil. Em tempo de pandemia, tempo em que deixámos o terror sentar-se confortavelmente nas casas e nos espíritos, convocar cidadãos ao teatro tem um bizarro e fascinante sabor a roleta-russa. O lugar que os atenienses “inventaram” para partilharem os episódios fundadores da sua sociedade, para testemunharem o que era a sua própria sociedade, sendo muito seleto, era, pelo menos, ao ar livre. Hoje, partilhar presenças e ideias comporta um risco considerável.

Nas anteriores peças do ciclo, habituámo-nos a ver Cláudia acompanhada de um outro artista, sobre o palco. Em 2020, isolada também se apresenta Cláudia Dias em “Sexta-Feira…”, higienicamente separada dos públicos por uma tela translúcida, através da qual a apercebemos graças ao desenho de luz de Nuno Borda d’Água. Não se trata, contudo, de uma estrita observação da etiqueta pandémica; a solidão é uma condição necessária ao trabalho da pitonisa, figura sacerdotal da Grécia Antiga, que Cláudia escolheu emular – não sem uma pitada da subtil ironia que alguns lhe reconhecerão. A esta figura, remanescente de um culto matriarcal anterior ao panteão de Zeus, cabia a tarefa de interpretar sinais e augúrios, dando respostas – ainda que obscuras – sobre o futuro dos que a consultavam. Pontes entre humanos e deuses, entre presente e futuro, as pitonisas eram eleitas, numa sociedade extremamente cruel e desigual, para desempenhar um trabalho excecional: ver e anunciar o que aí vem. Isto, claro, com o auxílio de vapores de etileno, indutores de um transe místico, que brotavam do solo vulcânico. Os mesmos que muitos de nós inalam num quotidiano de poluição, curto de futuro para o comum cidadão, mas onde se giza, a passadas largas, um futuro muito pouco respirável.

Assim, na sua solidão de pitonisa, Cláudia Dias elencou cinco visões de um futuro plausível mas não pacífico, a saber: 1) a ameaça nuclear; 2) o colapso da biosfera; 3) o renascimento do fascismo; 4) a digitalização da mão-de-obra; 5) a mercantilização da cultura; cinco visões que se tornaram especialmente próximas nos últimos cinco anos. Delimitam-nas ainda duas visões mais pessoais, uma sobre a sua condição presente, e outra sobre o seu próprio futuro. Visões coligidas com o contributo de Jorge Louraço Figueira, com base numa miríade de citações que vão de Shakespeare a Donald Trump, passando por Angela Davis e Jerónimo de Sousa. A apropriação de material externo foi também uma constante nas obras de Cláudia Dias, que, ao convocar as vozes de outros, tenta inscrever o pensamento de muitos. Não está assim tão só, portanto.

Além dos materiais literários, “Sexta-Feira” convoca mais outras duas linguagens: a animação de António Jorge Gonçalves e a música de Vasco Vaz / Miguel Pedro. Este duplo diálogo, lançou, uma vez mais no contexto “Sete Anos Sete Peças”, o desafio de estabelecer uma paisagem específica, onde todos os discursos pudessem coexistir com a sua autonomia e natureza próprias, e ainda assim, criar um nexo comum. Nos laboratórios de “Sete Anos Sete Peças”, muita da investigação foi dedicada a cirúrgica alternância de linguagens diferentes. Desta feita, António Jorge Gonçalves, que tem acompanhado todas as peças do ciclo, ilustrando as respetivas edições em livro, traz agora o seu traço, sob a forma de luz branca animada, para inscrever na tela formas com que Cláudia Dias interage (dança?!). E Vasco Vaz e Miguel Pedro tomam para si a maior parte do espaço, preenchendo-o com canções, a seu tempo ásperas, grandiosas, divertidas ou soturnas que Cláudia tem de… cantar. Este desafio suplementar casa também com a estrutura que “Sexta-Feira…” importou da tragédia grega, onde os episódios narrativos eram intervalados por comentários cantados pelo coro (estásimos). Neste último espetáculo do ciclo, Cláudia Dias propôs-se fazer algo que nunca tinha feito: transportar as suas palavras pelo canto – o canto não de quem seduz e rebrilha, mas o canto do artesão no seu labor.” Karas

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