livro sexta-feira

SEXTA-FEIRA

“Sexta-Feira: o fim do mundo… ou então não” traz consigo uma declaração de termo de atividade. Fechando a componente de espetáculos do ciclo “Sete Anos Sete Peças”, Cláudia Dias encerra também o seu percurso de criadora de espetáculos, iniciado em 1996 – um mundo de vinte e quatro anos que agora se remata. Não cabe aqui fazer uma reflexão aturada sobre todo esse mundo, mas para pensar “Sexta…”, cabe lembrar os “dias” (anos) anteriores que se têm sucedido desde 2015. Destaco, em particular, dois aspetos comuns a todas as peças deste ciclo: história e paisagem.
Recordemos que toda a génese do ciclo está numa reação às violentas e radicais medidas de austeridade desenhadas em 2010 em grande parte das economias ocidentais, e do seu impacto em Portugal, particularmente. Para contrariar a estratégia do “shock and awe” tornava-se necessário, justamente, parar e visualizar criticamente os eventos que tinham conduzido ao estouro da manada ultraliberal. Assim, desde “Segunda-Feira”, Cláudia Dias tem convidado a nossa atenção para a história da desunião europeia, para a história do extermínio do povo palestiniano, para a história do petrodólar, e não esquecendo a história das próprias contadoras de histórias. Seguir estas linhas temporais já nos levou a levar murros e pontapés, a incendiar mapa-múndi, a esgravatar crateras de mísseis, a ler em livros gigantes; e agora, chegada “Sexta-Feira…” escutaremos a história de vários futuros possíveis.
Este itinerário pelas histórias da história possui, felizmente, uma componente acidental, fruto das partilhas e conflitos de Cláudia Dias com os seus cocriadores convidados; é uma viagem que se inscreveu, indelével, nas vidas de quem nela partiu. Não é turismo predeterminado. Perspetivar assim a história requer uma certa distância, que as peças deste ciclo traduziram em espaços onde diversas linguagens se entrecruzaram, desenhando paisagens individuais.
Remate certeiro da globalização, a pandemia de Covid-19 a todos ditou isolamento, que se diz higiénico. Afastemo-nos de todos os materiais perigosos, como são os rostos, os toques, as ruas e as escolas. Barricados nas nossas próprias divisões, restam-nos os mundos virtuais como única possibilidade limpa de continuar as nossas vidas. Felizmente, empresas de telecomunicações e curadores de conteúdos estavam já bem preparados para nos socorrer neste momento difícil. Em tempo de pandemia, tempo em que deixámos o terror sentar-se confortavelmente nas casas e nos espíritos, convocar cidadãos ao teatro tem um bizarro e fascinante sabor a roleta-russa. O lugar que os atenienses “inventaram” para partilharem os episódios fundadores da sua sociedade, para testemunharem o que era a sua própria sociedade, sendo muito seleto, era, pelo menos, ao ar livre. Hoje, partilhar presenças e ideias comporta um risco considerável.
Nas anteriores peças do ciclo, habituámo-nos a ver Cláudia acompanhada de um outro artista, sobre o palco. Em 2020, isolada também se apresenta Cláudia Dias em “Sexta-Feira…”, higienicamente separada dos públicos por uma tela translúcida, através da qual a apercebemos graças ao desenho de luz de Nuno Borda d’Água. Não se trata, contudo, de uma estrita observação da etiqueta pandémica; a solidão é uma condição necessária ao trabalho da pitonisa, figura sacerdotal da Grécia Antiga, que Cláudia escolheu emular – não sem uma pitada da subtil ironia que alguns lhe reconhecerão. A esta figura, remanescente de um culto matriarcal anterior ao panteão de Zeus, cabia a tarefa de interpretar sinais e augúrios, dando respostas – ainda que obscuras – sobre o futuro dos que a consultavam. Pontes entre humanos e deuses, entre presente e futuro, as pitonisas eram eleitas, numa sociedade extremamente cruel e desigual, para desempenhar um trabalho excecional: ver e anunciar o que aí vem. Isto, claro, com o auxílio de vapores de etileno, indutores de um transe místico, que brotavam do solo vulcânico. Os mesmos que muitos de nós inalam num quotidiano de poluição, curto de futuro para o comum cidadão, mas onde se giza, a passadas largas, um futuro muito pouco respirável.
Assim, na sua solidão de pitonisa, Cláudia Dias elencou cinco visões de um futuro plausível mas não pacífico, a saber: 1) a ameaça nuclear; 2) o colapso da biosfera; 3) o renascimento do fascismo; 4) a digitalização da mão-de-obra; 5) a mercantilização da cultura; cinco visões que se tornaram especialmente próximas nos últimos cinco anos. Delimitam-nas ainda duas visões mais pessoais, uma sobre a sua condição presente, e outra sobre o seu próprio futuro. Visões coligidas com o contributo de Jorge Louraço Figueira, com base numa miríade de citações que vão de Shakespeare a Donald Trump, passando por Angela Davis e Jerónimo de Sousa. A apropriação de material externo foi também uma constante nas obras de Cláudia Dias, que, ao convocar as vozes de outros, tenta inscrever o pensamento de muitos. Não está assim tão só, portanto.
Além dos materiais literários, “Sexta-Feira” convoca mais outras duas linguagens: a animação de António Jorge Gonçalves e a música de Vasco Vaz / Miguel Pedro. Este duplo diálogo, lançou, uma vez mais no contexto “Sete Anos Sete Peças”, o desafio de estabelecer uma paisagem específica, onde todos os discursos pudessem coexistir com a sua autonomia e natureza próprias, e ainda assim, criar um nexo comum. Nos laboratórios de “Sete Anos Sete Peças”, muita da investigação foi dedicada a cirúrgica alternância de linguagens diferentes. Desta feita, António Jorge Gonçalves, que tem acompanhado todas as peças do ciclo, ilustrando as respetivas edições em livro, traz agora o seu traço, sob a forma de luz branca animada, para inscrever na tela formas com que Cláudia Dias interage (dança?!). E Vasco Vaz e Miguel Pedro tomam para si a maior parte do espaço, preenchendo-o com canções, a seu tempo ásperas, grandiosas, divertidas ou soturnas que Cláudia tem de… cantar. Este desafio suplementar casa também com a estrutura que “Sexta-Feira…” importou da tragédia grega, onde os episódios narrativos eram intervalados por comentários cantados pelo coro (estásimos). Neste seu derradeiro espetáculo, Cláudia Dias propôs-se fazer algo que nunca tinha feito: transportar as suas palavras pelo canto – o canto não de quem seduz e rebrilha, mas o canto do artesão no seu labor.
Ao cabo deste caminho, causará espanto, na classe artística e nos públicos, que uma artista reconhecida internacionalmente cesse atividade no auge da sua capacidade de produção; soará até a desistência, cansaço. Mas, sendo certo que muito dessa decisão permanecerá saudavelmente misteriosa, é-nos lícito depreender que outro tanto decorrerá da contemplação da própria paisagem, sabendo que, havendo destino, pouco importa o meio de transporte.

Karas