
TERÇA-FEIRA: TUDO O QUE É SÓLIDO DISSOLVE-SE NO AR
O projeto Sete Anos Sete Peças, a realizar entre 2016 e 2022, corresponde ao período dos 44 aos 50 anos de idade da Cláudia Dias. Durante esse tempo, Cláudia propôs-se criar uma peça nova por ano, sempre com um parceiro diferente, e escrever sete textos, a publicar com desenho e grafismo de António Jorge Gonçalves. Cada peça recebeu o nome de um dos sete dias da semana (segunda, terça, quarta, quinta, sexta, sábado e domingo), seguido de um subtítulo. O todo é maior que a soma das partes. Seguir anualmente cada peça e acompanhar a sequência é uma experiência diferente de ver cada uma delas, isolada ou alternadamente. Sete peças mais uma, essa formada pelo todo; ou ainda inúmeras outras, resultantes das várias combinações possíveis e da coleção particular que cada um queira e possa fazer. A criadora apostou que inscreveria este ciclo no calendário pessoal e na vida pública. O projeto destina-se aos portugueses, aos europeus e a todo o mundo. Os Sete Anos Sete Peças são de todos.
A produção de espetáculos e a indústria cultural amadureceram em Portugal ao mesmo tempo que o regime democrático, estabilizando num sistema de criação ligado aos aparelhos das autarquias municipais, por um lado, e à imprensa e indústria audiovisual, por outro. As artes cénicas parecem funcionar segundo o princípio de que a reputação e fama de quem faz é mais importante do que os trabalhos efetivamente feitos. Este princípio vale para o regime político. É necessário ter notoriedade para ser eleito e governar o país, e mais importante ter essa visibilidade que qualquer outra coisa, nos vários níveis da administração pública do dito regime, incluindo os centros culturais, as salas de espetáculos, os festivais e os grupos apoiados pelo Estado. O mesmo vale para espetáculos e ficção com fins comerciais. Os trabalhos de Cláudia Dias são uma alternativa radical a essa transformação das peças em fetiche. O protagonismo da artista e dos parceiros é mínimo. A importância é dada ao trabalho. Contra o vedetismo recíproco de artistas e líderes políticos, Cláudia Dias cria espetáculos sobre a impossibilidade de compreender o mundo e a necessidade de transformar o mundo para melhor, ambas pensadas do ponto de vista de uma comunidade imaginada. A escolha dos temas e das formas é feita segundo uma visão do mundo que articula os aspetos individuais e coletivos e quer expor as contradições entre subjetividade e objetividade. A integridade e consistência das propostas faz com que os trabalhos se distingam no conjunto das artes portuguesas e furem o bloqueio (simbólico) da criação artística e da produção cultural contemporâneas. Estas peças são sobre a realidade fora da sala de espetáculos e, mais do que isso, são uma realidade em si, não subordinada, capaz de desestabilizar a noção que o público tem das coisas, nomeadamente das coisas públicas.
Terça-feira: tudo o que é sólido dissolve-se no ar estreou em Março de 2017, cerca de um ano depois da primeira peça. A Europa não só continuava presa ao dogma neoliberal, como mostrara uma face ainda mais odiosa. Desde há vários anos que morriam milhares de migrantes africanos no Mediterrâneo, ao tentarem fazer a travessia marítima, e que outros ficavam detidos em campos de refugiados, para serem deportados. Mas agora somavam-se a essas pessoas os refugiados sírios, que faziam o caminho a pé, atravessando a Turquia e outros países do Levante, para serem igualmente retidos em condições desumanas. O conflito no Médio Oriente e as migrações forçadas tinham chegado ao continente europeu, 50 anos depois da fundação do Estado de Israel.
O cenário era uma plataforma coberta por uma alcatifa negra onde os dois criadores iam desenhando, com fio branco, uma série de figuras, inspiradas nos filmes de animação de Luciano Cavandoli, La Linea. Ao fundo, numa tela, eram projetadas frases que completavam o sentido das imagens delineadas. Num tom aparentemente neutro, o texto ia desenrolando o fio de uma parábola realista, repleta de factos históricos, que contava a desventura de uma figura imaginária, Omar. Vindo da Síria, este menino de dez anos não poderia ser qualquer um de nós — jamais, frisa o texto — apesar de todos nos vermos vinculados a ele. Som, imagem, movimento e texto eram cuidadosamente desfasados uns dos outros (e manipulados à vista de todos), para causar estranheza e reflexão. Ao mesmo tempo, a combinação das palavras com as figuras, os ruídos e os corpos gerava uma sequência de símbolos que dava aos argumentos e factos apresentados forte carga emocional e íntima, alargando o círculo dos implicados no tema de modo a incluir tanto os espectadores presentes na plateia como os responsáveis políticos europeus.
Jorge Louraço Figueira